Pensamentos Soltos... Instantes...

"Nós somos dos tecidos de que são feitos os sonhos"

Shakespeare, William

07/12/2008

Viver no presente...

O que eu admirava em Jorge Guillén era a sua capacidade de viver apaixonadamente o presente. Perante outros poetas que fazem surgir a poesia duma preocupação de ruminar as amarguras velhas ou tecer os sonhos do futuro, Guillén evita até os verbos no passado ou no futuro, para tornar tudo presente, no pé que hoje colocamos aqui, nesta hora que hoje me é concedida.
Admirava-o porque uma atitude assim diante da vida é muito rara. O que abunda entre nós é a fuga para o ontem ou para o amanhã, a venda à nostalgia ou à evasão.
Se não me engano, os meus contemporâneos, salvo alguma excepção, dividem-se em quatro grupos: os que vivem amarrados ao passado, uns por saudade outros por amargura; e os que vivem magnetizados pelo futuro, uns porque têm medo e outros porque vêem nele a realização dos seus sonhos. Quatro formas de fugir à realidade. Quatro maneiras de não estar verdadeiramente vivo.
São muitos os que caminham presos ao passado. São os que vivem amarrados a um fracasso ou a uma ferida, que lhes teria anestesiadoa alma para sempre. São os que hoje vivem amargurados porque há trinta anos a mãe não gostava deles, porque a noiva os traiu, ou porque fracassaram. Não perdoaram a si mesmos a dor antiga, e aí estão eles a dar voltas ao passado como um cão a um osso. Juntam-se-lhes os escrupulosos que inventaram um Deus rancoroso e insaciável, perante o qual deveriam continuar a expiar o velho erro da juventude que ainda hoje os atormenta – quando Deus já está cansado de o ter esquecido. São estátuas de sal que não conseguem viver o presente de tanto olhar para trás. Pessoas que não querem entender que “águas passadas não movem moinhos”, ou que, como diz um adágio russo, “chorar pelo passado é correr atrás do vento”.
Primos-irmãos destes passadistas são os nostálgicos, essa peste humana que ultimamente se tem multiplicado. De repente, como muitos não gostam do presente, e como não parecem ter capacidade para o modificar, refugiam-se a saborear as suas recordações como quem chupa um rebuçado de morfina. Mas haverá alguma coisa mais louca do que a nostalgia? A Bíblia chamou “néscios”, há mais de vinte séculos, aos que continuaram a pensar que o passado foi o tempo melhor. Seria bastante mais sensato reconhecer que não foi o mundo que ficou pior; nós é que envelhecemos, e não gostamos de reconhecer que começamos a ser ex-reis do mundo, porque os reis agora são outros. Os que vivem no passado estão condenados a afundar-se. Porque o destino do passado é ser passado, e sê-lo cada vez mais.
Eu não vou dizer que o passado não serve para nada. Serve na medida que ilumina o presente, na medida em que é manancial do futuro. Isto é : serve na medida em que deixa de sê-lo, na medida em que se torna estímulo e não mera saudade.
A verdade é que de cem em pensam no passado, talvez um o faça para melhorar o futuro; ao passo que noventa e nove o fazem para encontrar um refúgio sentimental. Não gostam do presente, e aí têm eles uma maneira torpe de se enganarem e não viverem.
Estes, amarrados ao passado, vivem também com frequência aterrados diante do futuro, duplicando assim os próprios grilhões. São como um suicida que não teve coragem de se matar, e escolheu como forma de morte lenta essa morfina dos sonhos. É espantoso que esse pânico diante do futuro, que durante séculos foi uma doença típica dos velhos, se tenha convertido recentemente em peste juvenil. Falaram-lhes tanto na guerra nuclear que acabaram por antecipá-la pela falta de paixão em melhorar o mundo. O medo agrilhoa o homem contemporâneo como essas aranhas que primeiro anestesiam as moscas, depois imobilizam, para as comerem mais tarde.
Presos ao futuro, ainda que no extremo oposto, estão aqueles que vivem adiando a vida, e preparando-se para uma felicidade que, dizem, há-de vir, mas que de momento os impede de desfrutar as pequenas felicidades presentes. São os que passam a vida a adiá-la. Primeiro, pensam que a sorte chegará quando casarem. Depois, quando tiverem filhos. Em seguida, quando os meninos estiverem crescidos. Mais tarde, quando chegar a reforma. Não se dão conta de que quem repete quatro vezes que a felicidade chegará amanhã, à quinta vez está a dizer que nunca mais chegará. Os sonhos excessivos são quase sempre o prólogo da margura.
Por tudo isso, gostaria de gritar aos meus amigos que a única maneira de estar vivos é viver no presente. Que só hoje se pode ser feliz. Que a fuga para o passado ou para o futuro é mesmo, e só, uma fuga. Que um ser que quer viver de verdade deveria gritar a si mesmo diante do espelho, ao levantar, que o dia que começa é o mais importante da sua vida. O passado passou. O futuro virá das mãos de Deus, e nelas se há-de deixar. A nossa única tarefa é o presente, esta hora. Deus não nos espera amanhã. Cruzar-se-á hoje connosco. A nossa própria ressurreição começou no momento que vivemos agora.
Unamuno irritava-se, e com razão, quando lhe falavam do futuro. “Não há futuro, gritava. O que chamam futuro é uma das grandes mentiras. O verdadeiro futuro é hoje. Que será de nós amanhã? Não há amanhã. Que é de nós, hoje e agora? Eis a única questão”.
Nem só os jovens tomam drogas. Há muitos velhos que se injectam de nostalgia do passado ou de terrores do futuro. São morfinas tão perigosas como a heroína ou a cocaína. São como os jovens que preferem fumar sonhos a trabalhar, imaginar revoluções a ir mudando lenta e dolorosamente este mundo. Mas nem os sonhos nem as nostalgias mudarão um só tijolo.
Só o presente existe. Ou sou feliz hoje, ou o não serei nunca. Ou trabalho hoje, ou nunca trabalharei. Ou vivo hoje, ou serei apenas um morto que sonha e que recorda.

Livro: Razões para a alegria - José Luís Martín Descalzo

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