Pensamentos Soltos... Instantes...

"Nós somos dos tecidos de que são feitos os sonhos"

Shakespeare, William

04/02/2007

Sorrisos...

O sacramento do sorriso
Se eu tivesse de pedir a Deus um dom, um único dom, um presente celeste, creio que não hesitaria em pedir a suprema arte do sorriso. É o que mais invejo em algumas pessoas. É, penso eu, o cúmulo das expressões humanas.
Bem sei que há sorrisos mentirosos, irónicos, de desprezo, e até aqueles que o teatro romântico qualificava de "risos sardónicos". É deles que dizia Shakespeare, numa das suas comédias, que "se pode matar com um sorriso". Mas não é desses que eu estou a falar. É bem triste que até o sorriso se possa perverter. Mas não vale a pena gastar tempo a falar de podridão. Falo, sim, dos sorrisos que se levantam de uma alma iluminada, que aparecem como o estalar de um relâmpago na noite, como o que vimos ao ver uma corça a correr, ou o que produz em nossos ouvidos o murmúrio de uma fonte num bosque solitário; ou os sorrisos que milagrosamente vemos despontar no rosto de um menino de oito meses, e que algumas pessoas - pouquissimas! - conseguem conservar durante toda a vida. ...
Quando vemos um rosto que sabe sorrir, temos a impressão de termos regressado ao paraíso. Di-lo estupendamente Rosales quando escreve que "é certo que te podes perder dentro de certos sorrisos, como no meio de um bosque; e é certo que talvez possas viver anos e anos sem regressar de um sorriso". Deve ser, por isso, muito fácil enamorar-nos de pessoas que possuam um bom sorriso. E que felizes são aqueles que tem um ser amado em cujo rosto desponta com frequência esse fulgor maravilhoso!
A grande questão está, porém, em saber como se consegue um sorriso. É um puro dom do céu? Ou constrói-se como uma casa? Eu suponho que é uma mistura de ambos os elementos, mas com predomínio do segundo. Uma pessoa formosa, um rosto limpo e puro, tem já meio caminho andado para conseguir um sorriso fulgurante. Mas todos conhecemos velhinhos e velhinhas com sorrisos fora de série. Talvez os melhores sorrisos que eu conheci sejam precisamente os das freiras idosas: madre Teresa de Calcutá, e outras menos conhecidas.
Por isso me atrevo à dizer que um bom sorriso é mais uma arte do que uma herança. Que é uma coisa a construir, pacientemente, laboriosamente.
Com quê? Com equilibrio interior, com paz na alma, com um amor sem fronteiras. Quem ama profundamente sorri sem dificuldade. Porque o sorriso é, em primeiro lugar, uma grande fidelidade interior a nós mesmos. Um homem azedo não sabe sorrir. Muito menos um orgulhoso.
É uma arte que temos de praticar obstinada e constantemente. Não a fazer trejeitos diante de um espelho, porque o fruto desse tipo de ensaios é a máscara e não o sorriso. Aprender na vida, deixando que a alegria interior vá iluminando tudo quanto no dia a dia nos acontece, e impondo a cada uma das nossas palavras a obrigação de não chegar à boca sem ter mergulhado antes no sorriso, tal e qual como se obrigam as crianças a tomar banho antes de sairem de casa pela manhã.
Isto aprendo eu de um velho professor de oratória, que um dia nos deu a melhor das lições. Foi quando explicou que se tivéssemos de dizer num sermão ou numa conferência algo de desagradável para os ouvintes não deixássemos de o dizer, desde que nos obrigássemos a dizê-lo com um sorriso.
Naquele dia aprendi alguma coisa que me tem sido infinitamente útil: tudo se pode dizer e não há verdades proibidas. O que tem de estar proibido é de dizer a verdade com azedume, com desejo de ferir e magoar.
Quando uma das nossas frases vai magoar os ouvintes (ou leitores) não é por eles serem egoistas e não gostarem de ouvir a verdade, mas porque nós mesmos não soubemos dizê-la, porque não tivemos amor suficiente ao nosso público para pensar sete vezes na maneira de dizer essa amarga verdade, como pensamos na maneira de anunciar a um amigo a morte de sua mãe. A receita de pôr em todos os nossos coqueteiles de palavras umas gotinhas de humor sorridente costuma ser infalível.
Todo o sorriso tem alguma coisa da transparência de Deus, da grande paz. Por isso me atrevi a intitular este comentário "o sacramento do sorriso". Porque é sinal visivel de que a nossa alma está aberta de par em par.

José Luís Martín Descalzo - "Razões para a alegria"

2 comentários:

Anónimo disse...

Nunca tinha lido nada deste senhor, mas efectivamente chama mm a atenção pelo conteúdo das suas palavras ... mas, num sei porquê, acho que se ele era padre devia ser um "espinho" nos restantes ... espero que tenha tido uma boa vida, cheia de sorrisos :)

Anónimo disse...

Sim, viveu em pleno uma verdadeira vocação... O que não acontece com todos... Este é dos "meus" Padres sorridente e sempre optimista :D