Pensamentos Soltos... Instantes...

"Nós somos dos tecidos de que são feitos os sonhos"

Shakespeare, William

28/01/2007

Quando 2=1...

Ana Madalena
De todos os seres humanos, aquele de quem tive maior inveja em toda a minha vida foi João Sebastião Bach: diante da estatura do seu génio, senti-me um pigmeu; perante a serenidade de mar calmo do seu espírito, pareceu-me um labirinto de confusões o meu; perante o seu equilíbrio como ser humano, experimentei-me neurótico; vi-me trivial, frívolo, contemplando a sua fundura.
Hoje, porém, tenho de confessar alguma coisa de novo: se até agora o invejei antes de tudo pela sua música, pela sua obra colossal, hoje creio que o invejo muito mais pela sua mulher, pelo dom infinito de ter sido querido por alguém como Ana Madalena Bach.
Acabo de ler um dos mais belos livros que existem não pela sua qualidade literária, mas pelo rio de amor que inunda cada uma das suas páginas: "A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach", de que tanto tinha ouvido falar, mas que nunca conhecera.
É um livro super-simples. Uma mulher transparente, não excepcionalmente culta, fala no tom de uma menina adoradora do homem que encheu a sua vida. Fá-lo depois de ele morrer, quando já todos começaram a esquecê-lo, quando vive na miséria, porque o seu marido não soube poupar e teve de vender mal as poucas recordações que dele lhe restavam. Quando já só resta o amor ou a recordação infinitamente doce daquele amor.
Confesso que nunca acreditei que pudesse existir no mundo um carinho tão terno, tão intenso, tão desinteressado, tão duradoiro, tão profundo, tão verdadeiro. E parece-me que só agora começo a entender aquele universo de música que João Sebastião pôde escrever envolto naquele oceano de amor.
Há páginas com que não sabemos se comover-nos, ou se rir, ante a "adoração" com que Ana Madalena fala de Sebastião. Eis algumas amostras que dão o tom a todo o livro:
- "Cada vez que o via, o meu coração começava a bater com tanta força, que me impedia de falar",
- "Uma única vez na vida fui suficientemente tonta para acreditar que ele estivesse enganado",
- "No seu coração estava sempre viva a sensação de que ele era maior que todos os reis".
- "Sobre Maria Bárbara (diz, aludindo, à primeira mulher de Bach, sem sentir dela os menores ciúmes) derramou-se a bênção do seu amor, embora, às vezes, pense, com um sorriso, que gostou mais de mim do que dela, ou ao menos, por bondade da Providência, durante mais tempo".
- "Viver com ele e vê-lo dia a dia era uma felicidade que eu não podia merecer, nem nunca mereci. Durante muito tempo vivi num estado de assombro, como num sonho, e algumas vezes, quando Sebastião estava fora de casa, apoderava-se de mim o terror de poder despertar desse sonho e voltar a ser a menina Ana Madalena Wülken, em vez da esposa do maestro de capela Bach".
- "A nós deixava-nos observar o seu coração, que era o mais belo que pulsou neste mundo".
- "Nunca quereria deixar de ser a pobre velha abandonada que agora sou, se tivesse de comprar a mais formosa e honrosa velhice ao preço de não ter sido sua companheira".
- "Já não tenho - diz a última página do livro - nenhum motivo para viver: o meu verdadeiro destino chegou ao fim, quando se apagou a vida de Sebastião, e peço diariamente a Deus nas minhas orações a graça de que me leve deste lugar de sombras e me volte a reunir com ele que, desde o primeiro momento em que o vi, foi tudo pa¬ra mim. Só a vida terrena me separa dele".
A série de citações seria interminável. E há que assinalar que não são palavras para adular alguém vivo. Também não são elogios fúnebres de um recém-morto. É o que se pensa e se sente quando a morte começa a ficar distante, quando o que se apalpa é a miséria que se recebeu como única herança e quando tudo o mais é esquecimento. Mas um amor assim, uma devoção assim, são o melhor prémio que alguém pode conquistar neste mundo.
Agora, porém, quero acrescentar mais alguma coisa. Li estas frases a algumas amigas, e todas elas - como se antes se tivessem posto de acordo - comentaram o mesmo: "Assim, também eu. Um homem como Bach não devia ser difícil amá-lo e admirá-lo". Esta resposta deixou-me a alma cheia de perguntas. Algumas parecem-me muito importantes:
- Ana Madalena amou João Sebastião porque o compreendia e admirava, ou, pelo contrário, compreendeu-o e admirou-o porque o amava?
- Ana Madalena amou João Sebastião porque ele era um homem extraordinário, ou talvez ele foi o homem extraordinário porque se viu envolvido num amor assim?
Não são jogos de palavras. E creio que valerá a pena dar-lhes uma resposta.
À primeira respondeu a própria Ana Madalena, quando, no título do primeiro capítulo do livro, nos diz que "o compreendeu totalmente porque o amava". Quando nos explica sem rodeios que "Sebastião era um homem muito difícil de conhecer não o amando".
Enganamo-nos, se julgarmos com olhos de hoje. Na sua época, ninguém - só Ana Madalena e poucos mais - descobriu que Bach era o génio que hoje conhecemos. Os que o julgavam com suas rotinas ou suas inteligências pensaram que fosse um músico a mais. E esqueceram-no apenas morto só Ana Madalena se atreveu a afirmar, anos depois da sua morte, que "embora os homens não atendam hoje à sua recordação, não o esquecerão para sempre. A humanidade não poderá silenciar sobre ele muito tempo". Só ela entendeu que quando o mundo pensava mais na obra dos seus filhos do que nele, no futuro seria a música de Bach que se imporia. Era Ana Madalena que se enganava cega pelo seu amor, ou era o seu amor que se tomava profético e muito mais inteligente que a inteligência dos seus contemporâneos?
Quero dizer aqui alguma coisa que pensei muitas vezes: que o coração não é só o orgão do amor, mas que pode ser também o orgão do conhecimento. Que não se entende só com a razão. Que há campos humanos em que "o coração tem razões que a razão não compreende" (Pascal). Quantos casais não se entendem porque não se amam! Quantas coisas ininteligíveis começam a clarificar-se quando se olham com um novo amor!
Mas ainda me interessa mais a segunda pergunta: a questão da mútua fecundação dos que se amam. Nem só fisicamente é fecundo o amor. Os que se amam reengendram-se um ao outro, multiplicam-se, recriam-se. E assim o amor de Ana Madalena multiplicou-a a ela e multiplicou João Sebastião.
Multiplicou-a a ela. Durante a sua vida, "uma palavra de aprovação sua valia mais que todos os discursos do mundo". Depois da sua morte, "embora não tenha nenhum objecto que mo faça recordar, bem sabe o céu que não é necessário, pois me basta o inestimável tesouro de recordações que repousa no meu coração".
Aquele amor rejuvenescia-os aos dois: "Quando me via ao espelho pensava que era como quando o conheci. Mas, fosse qual fosse a ilusão que criara a esse respeito, sempre é melhor que envelheça o rosto do que o amor. Eu tinha contemplado o rosto de Sebastião com tanta persistência, que todas as transformações nele produzidas escaparam à minha percepção desde o dia em que o vi pela primeira vez na igreja de Santa Catarina de Hamburgo, e tinha de fazer expressamente comparações para me convencer de que também nas suas faces o tempo tinha realizado a sua obra".
Mas isto não é tudo. O importante é perguntar que parte da música de Bach devemos ao amor que Ana Madalena lhe tributou. Teria ele composto aquele universo de harmonia e serenidade, se não a tivesse a seu lado? Ana era absolutamente consciente - já desde o próprio dia do seu casamento - de que "se em alguma coisa o fizesse infeliz, correria o perigo de malograr a sua música".
Podemos então perguntar-nos quantos génios não se terão malogrado por não terem sido suficientemente amados! Quantas obras musicais ou poéticas nasceram envinagradas porque numa casa os nervos dominaram o amor!
Esta ideia deveria angustiar-nos. A nossa falta de amor não só pode fazer infelizes os que nos rodeiam, como pode também torná-los infecundos, ou peturbar a sua fecundidade. Será a falta do "meu" amor, que torna infeliz este mundo em que vivemos?
Querida Ana Madalena, obrigado pelo teu amor, obrigado pela música do teu esposo! Eu sei que a escrevestes os dois juntos, com o vosso amor.

José Luís Martín Descalzo - "Razões para o amor"

2 comentários:

Anónimo disse...

O mal é mm este "Hoje, porém, tenho de confessar alguma coisa de novo: se até agora o invejei antes de tudo pela sua música, pela sua obra colossal, hoje creio que o invejo muito mais pela sua mulher, pelo dom infinito de ter sido querido por alguém como Ana Madalena Bach. " ...

Qual a necessidade de o ser? Melhor seria entregar-se como ela o fez, pois assim teria a felecidade de ter alguém a quem o fazer e não ser o objecto de ...`pois como diz o outro: " a maior oferenda é dar, não receber" ... :d

Su disse...

Sim, e pelo que entendo foi uma oferta mutua de amor entre os dois e daí eu ter colocado o titulo 2=1, porque os dois viveram em sintonia... :)