Pensamentos Soltos... Instantes...

"Nós somos dos tecidos de que são feitos os sonhos"

Shakespeare, William

15/01/2007

Querido ladrão...

Gostaria que este primeiro apontamento do meu Caderno chegasse às tuas mãos, amigo ladrão, tu que há duas semanas me arrombaste a porta do apartamento, revistaste as minhas gavetas e abriste um por um todos os meus armários. Gostaria, pelo menos, de te agradecer, não tanto por nada teres levado, mas sobretudo por teres deixado em ordem todos os meus papéis.
Quer-me parecer, meu rapaz - porque estou certo que não passas dum rapazola - que amaldiçoaste todos os meus ascendentes ao descobrir que em minha casa - desgraçadamente para ti, afortunadamente para mim - havia só coisas que não te interessavam absolutamente nada: livros, discos, e um ou outro objecto de arte muito querido ao meu coração, embora sem grande valor em si mesmo. O que tu procuravas - suponho que para mais te afundares na droga - eram jóias, ouro, dinheiro. Se me conhecesses, terias poupado o trabalho de me arrombar a porta. Já saberias que o ouro e as jóias me parecem as duas coisas mais estúpidas do mundo. E que, quanto ao dinheiro, tenho uma habilidade diabólica para o gastar mais depressa que o ganho. Não encontraste o que não podias encontrar.
E, no entanto... No entanto, tu tiraste-me - com a cumplicidade da minha cobardia - alguma coisa de mais valor que os preciosos diamantes. Vou explicar-me. Eu sempre defendi que a confiança é parte substancial da vida dos homens; que seria preferível não existir a viver com a alma bloqueada. Se não tenho confiança naqueles que estão junto de mim, e rodeio a vida e o coração de arame farpado, não farei mal a quem se aproximar de mim, mas fá-lo-ei a mim mesmo. Um coração desconfiado envelhece depressa. Um coração fechado entre paredes de pedra e cal está mais morto do que se realmente tivesse morrido.
Aqui tens a razão pela qual sempre fui contra o reforço das portas da minha habitação (e assim te foi tão fácil assaltá-la). A mesma razão me levou a ter sempre o costume de não tirar as chaves das gavetas e dos armários (e por isso não precisaste de os rebentar para os abrir).
Os três vizinhos do meu andar já tinham blindado as suas portas. E os três me haviam dito mil vezes que fizesse o mesmo, já que todos os dias liam nos jornais notícias de rapazes como tu. Eu sempre me ria: "Em minha casa -dizia - não há coisas que possam interessar a ladrões". Mas, no meu interior, era outra a razão decisiva. Sabia, sim, que a violência é um dos eixos do mundo de hoje, mas não queria ser levado a pensar ou imaginar que ela se voltaria contra mim, convertendo-me, deste modo, num "violento defensivo", numa alma enclausurada.
Havia ainda outra razão. Se tu me conhecesses, saberias decerto que sempre vi um pouco em Bernanos o pai da minha alma. Pois bem, este famoso escritor - lê-o, que a sua leitura é mais apaixonante do que a droga - prestava verdadeiro culto à confiança entre os homens. A tal ponto que quando um dia lhe contaram que havia regiões no Brasil onde as casas não tinham portas, nem ferrolhos, nem chaves, foi viver para lá, convencido de que aqueles que assim pensavam, por força haviam de ser homens completos.
Também eu me sentia vinculado a esse culto da confiança. Preferia, inclusive, ser roubado afazer da minha alma um castelo roqueiro.
Dito isto, reconheço que pequei. Eu pecador me confesso a ti, ladrão amigo, para te contar que atua avareza e a minha cobardia, juntas, foram mais poderosas que todos os meus propósitos.
Naquela tarde, quando encontrei a porta aberta de par em par, graças ao trabalho das tuas mãos, senti tremenda revolta no fundo de mim mesmo. Não era contra ti ( ou, pelo menos, não era só contra ti), mas contra este mundo que estamos a construir . Gostaria, por isso, de saber quem eras e como eras. Saber se estás consciente -como eu estou - de que este planeta se está a tornar inabitável. Não quero sequer pensar que a droga acabou por pulverizar para sempre atua consciência.
Naquela noite, dormi mal. Era acordado por ruídos inexistentes. Vi monstros que talvez se parecessem pouco contigo, mas que eram piores do que tu; tu, porém, serás como eles se continuares por esse caminho. Apoderou-se de mim uma raiva secreta. Não por me teres roubado - a verdade é que nada levaste e eu poderia dar-me por feliz - mas por viver em meio duma sociedade que, decerto, te fechou primeiro a porta do trabalho, para te atirar em seguida para a senda aberta do vício. Vício caro e destruidor.
Durante os dez dias seguintes, continuei a sentir-me estranho. Sempre chegava a casa com o coração abater e a imaginar o pior: porta arrombada e tu, lá dentro, de faca em riste e revólver apontado.
Muito pequena devia ser a minha confiança. Ao sexto dia, capitulei. Não sei que demónio me levou a pensar que só uma porta blindada traria a paz ao meu coração traumatizado.
Sem mais delongas, aí estão ferrolhos, trancas, barras de aço, chaves supercomplicadas: todo um armamento defensivo. Como se vivesse encerrado em caixa-forte, feito lingote desse ouro a que não dou valor nenhum.
Agora sinto-me muito mais tranquilo. Mas muito menos homem. Muito menos fraterno. E não tenho pena do dinheiro que, graças à tua façanha, tive de gastar; tenho pena de saber que aumentou o número dos que desconfiam, dos que vivem com a alma cheia de cães de guarda.
A culpa não é só tua. É também minha. Este sentimento de culpa comum é certamente o único traço humano que resultou de tudo isto.
Queira Deus que possas ler estas linhas e sentir alguma coisa de parecido. Assim nós dois saberíamos que atua avareza e o meu medo se deram as mãos para construir esta tristeza.

José Luís Martín Descalzo - "Razões para a Esperança"

2 comentários:

Anónimo disse...

Pois, qtas das nossas acções são efectivamente originadas por acções de terceiros ... :(

Mas, já não é mau quando se toma consciência da sua origem ... mas, como sempre, come o justo pelo pecador ...

Jocas

Su disse...

Sim muitas vezes fechamo-nos e afastamo-nos dos outros por apanharmos tts vezes com injustiças... Mas salvam-se os grandes e os verdadeiros amigos para nos ajudarem a levantar novamente, e voltar acreditar... :)

Jocas